terça-feira, 14 de maio de 2013


Crack ao alcance de todos





O novo governo tem um problema grave para enfrentar. O uso do crack se espalha pelo Brasil. No Paraná os dados são alarmantes.

Até pouco tempo, a classe média achava que era vítima do tráfico quando um usuário de drogas roubava a bolsa de uma madame, ou o relógio de algum motorista distraído no semáforo. No entanto, de alguns anos para cá, essa convivência está cada vez mais intensa. De meros personagens em uma história marcada pela violência, “madames” e “motoristas” passaram a ser também mães e pais de viciados.

De acordo com um integrante da Narcóticos Anônimos de Curitiba, que não pode ser identifi cado para preservar a integridade do trabalho por ele desenvolvido, o número de viciados em crack pertencentes à classe mais alta da sociedade está cada vez maior, e pior, não para de crescer. “Temos alguns critérios, por exemplo, não perguntamos detalhes sociais para as pessoas que procuram ajuda. Só sabemos a que classe elas pertencem depois que entram para a irmandade”, explicou. Ele disse também que os jovens ricos, que supostamente deveriam ser mais esclarecidos, estão sendo enganados facilmente pelo traficante, geralmente bem menos instruído do que eles. “Começam com a maconha, depois o 'mesclado', que é o baseado misturado com cocaína e em seguida o 'cabralzinho', ou 'capetinha', que é o cigarro de maconha misturado com crack raspado. Depois disso, um simples baseado nunca mais terá o mesmo efeito”, comenta o rapaz que a todo instante comemora os dois anos e meio, ou melhor, os novecentos dias sem usar a droga.

Em Curitiba, a clínica terapêutica Quinta do Sol é referência no tratamento de dependentes químicos e atende tanto particular quanto convênio. É exatamente na forma de atendimento que a diferença de classes é percebida. Percebe-se principalmente que o uso de entorpecentes pelos mais abastados está numa linha crescente.

Segundo a psicóloga da clínica Quinta do Sol, Tamara Marussig, especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as famílias que possuem plano de saúde que cobre o tratamento são pessoas mais simples, e que na maioria das vezes moram em lugares onde o tráfico é mais intenso. Por outro lado, os pacientes particulares são os ricos, que podem pagar diárias que custam entre R$ 384 a R$ 486 reais, além de outros custos, como remédios, por exemplo. “Cada pessoa tem um tipo de tratamento, de acordo com o comprometimento com a droga. Em alguns casos o usuário precisa passar o dia na clínica e à noite vai para a casa, mas em outros, é necessária a internação por até 60 dias”, explicou.

A psicóloga disse também que o marketing feito pelo traficante é decisivo na hora do usuário de classe mais alta escolher o crack. “Geralmente acontece quando ele vai comprar a cocaína e não encontra. Também existem casos em que a droga não faz mais efeito e o usuário precisa de algo a mais, e são nessas horas que o poder de persuasão do traficante fala mais alto, empurrando o crack como uma sugestão para suprir aquela necessidade”, completou.

AS FACES DA DROGA


Jovem, pobre, negro e sem escolaridade. Este é o perfil da maioria de vítimas de homicídios registrados no Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Grande parte está relacionada com o tráfico de drogas, em especial o crack.

Além do Ipea, o resultado de outras pesquisas realizadas por instituições diferentes como a Rede de Informação Tecnológica Latino Americana (Ritla), Organização das Nações Unidas (ONU) e até mesmo o Ministério da Saúde, também mostram que o crescimento significativo no número de homicídios entre a população jovem, com idade entre 15 e 24 anos, será determinante na mudança do perfil da sociedade brasileira. Em aproximadamente 25 anos, teremos uma população formada por mulheres e velhos.

Segundo a Ritla, entre 1996 e 2006, os homicídios entre jovens com idade entre 15 e 24 anos aumentaram em 31,3%. A estimativa é de que daqui a 26 anos o Brasil tenha aproximadamente 238 milhões de habitantes e mais de 40% da população tenha entre 30 e 60 anos.

Em Curitiba e Região Metropolitana os números são tão alarmantes quanto de outras capitais. De acordo com o site da Secretaria de Segurança Pública, só em 2007, 1.156 pessoas foram assassinadas em Curitiba e nos 28 municípios que integram a RMC. Vale lembrar que não estão incluídas vítimas de confronto com a polícia e latrocínios.

Recentemente, a Delegacia de Homicídios (DH) divulgou que cerca de 85% dos casos de assassinatos estão relacionados com o tráfico de drogas. Esta informação é contestada pelo professor Pedro Bodê, sociólogo e coordenador do Centro de Estudos de Segurança Pública e Direitos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Segundo ele, é mais fácil associar os crimes ao tráfico de drogas do que entender que cada um tem uma motivação diferente. “Para divulgar uma pesquisa dessa grandeza, seria preciso, ao menos, exames toxicológicos nas vítimas. Nem todas as vítimas mortas em locais de conflito são viciadas ou tem ligação com o tráfico”, explicou. O professor disse ainda que “a sociedade está em transformação, mas além do efeito dos homicídios, a população está envelhecendo, e é preciso uma análise muito séria para traçar uma relação ente uma coisa e outra”, completa.

Quanto ao número de homicídios, Bodê disse que é evidente que muitos jovens morrem com armas de fogo, mas é preciso ser mais criterioso com os números levantados em delegacias. “A polícia não pode ser uma categoria analítica”, enfatizou. “Dizer que alguém morreu por estar relacionado com o tráfico de drogas é um argumento moral. Isso incomoda parte da sociedade em saber que mais uma pessoa morreu por estar envolvida com algo moralmente questionável”, argumentou.

O deputado federal pelo PSDB, Fernando Francischini, que foi delegado da Polícia Federal e secretário municipal antidrogas, não só discorda do sociólogo como também lista uma série de crimes que estão relacionados com o tráfico de drogas. “Desde o menino que realmente roubou para comprar algumas pedras de crack até o comerciante que foi morto durante um assalto, todos podem estar relacionados com o mesmo problema. Já vi casos onde os pais do usuário são agredidos e mortos por causa do envolvimento do filho. São vítimas diretas do tráfico de drogas”, enfatiza Francischini.

Um exemplo dramático dessa transferência de responsabilidade aconteceu no dia 17 de fevereiro deste ano, na cidade de Pinhais, região metropolitana de Curitiba, no Paraná. O fiscal de loja Mauro Sérgio dos Santos e a mulher dele, Rosângela Padilha dos Santos pagaram pelos erros do filho. Mal o dia clareava e um homem armado com um revólver invadiu a casa deles e sem compaixão executou-os ajoelhados ao lado da cama, no quarto do filho. Os tiros foram disparados na nuca e os dois morreram na hora.

JUVENTUDE ROUBADA


São inúmeros casos de adolescentes detidos pela Polícia Militar no Paraná. Em alguns casos eles mostram claro desinteresse em largar as drogas e a vida de crimes. Segundo Valdecir Botega, ex-superintendente da Delegacia do Adolescente, os crimes mais violentos são cometidos por adolescentes, quando isso ocorre a polícia tenta ajudar o menor infrator de alguma forma, mas acaba “brigando” com a falta de programas de governo que reintegrem o infrator à sociedade e a falta de interesse do próprio jovem em mudar de vida. A polícia não pode obrigá-lo a entrar em algum programa social, voltar a estudar ou internar-se num tratamento contra as drogas.

Outro fator que contribui para que o adolescente opte por uma vida irregular é ter uma família desestruturada. A família é a linha de frente no combate às drogas, de acordo com Botega. Por mais que os jovens tenham vontade de largar o vício, se não tiverem o apoio da família e, em segundo lugar, dos amigos, nunca largarão aquele mundo de crime. É uma decisão que ou lhes dará cadeia, ou lhes levará à morte, sejam assassinados por traficantes, por overdose ou doenças causadas pelos entorpecentes.

Quando um jovem infrator chega à Delegacia do Adolescente (DA), ele pode ser entregue aos cuidados da família, para que depois seja apresentado pelos responsáveis ao Ministério Público, ou, no caso de flagrante, ser internado em educandário enquanto seu caso é julgado. Botega explica que o jovem que chega à delegacia é autuado e examinado por psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros. Em seguida, é imediatamente apresentado ao MP, que tem 45 dias para definir a punição.

REAÇÃO IMEDIATA


A cocaína inalada leva em média 15 minutos para fazer efeito. O crack age imediatamente depois de inalado. Gera aceleração dos batimentos cardíacos, aumento da pressão arterial, dilatação das pupilas, suor intenso, tremores, excitação, maior aptidão física e mental. Além de euforia, sensação de poder e aumento da autoestima. No entanto, a dependência se instala em pouco tempo no organismo e se for inalado junto com o álcool, aumenta o ritmo cardíaco e a pressão arterial o que pode levar a morte.

O médico e professor universitário Wanderley Ribeiro Pires, autor do livro Drogas – Existe uma saída, relata: “Usuários de crack se tornam obcecados e é comum ver garotos arriscando-se a matar ou morrer por alguns trocados”. Segundo ele, o aumento no número de homicídios está diretamente ligado ao consumo do crack. “No Rio de Janeiro, onde o tráfico é controlado pelo crime organizado, a venda é menor. Trafi cantes perceberam que a droga mata ou incapacita rapidamente os consumidores e estão procurando focar o seu negócio na cocaína, para prolongar a vida útil da clientela”, relata.

USUÁRIO X TRAFICANTE


“Roubei um computador e vendi por R$ 500. Fui na favela e comprei 62 pedras de crack, suficiente para eu ficar dois dias e uma noite internado, fumando sem parar”. Esse triste depoimento foi dado por um adolescente em fase de recuperação. Além da melancolia da situação, pode-se tirar outras lições. A principal delas é que nem sempre uma pessoa que é presa com muitas pedras de crack é um traficante. Fato pouco pensado pela polícia que aborda e leva o detido para a delegacia onde ele é apresentado para a sociedade como traficante. Em alguns casos, nem é necessário que ele esteja portando grande quantidade de drogas, algumas pedras no bolso já são suficientes para que ele seja suspeito de envolvimento com o tráfico de drogas.

Para Francischini, o que pesa na decisão do juiz são as circunstâncias em que aconteceu a prisão. “Caso tenha mais indícios que relacionem o preso com o tráfico de drogas, como dinheiro trocado, balança de precisão e outros utensílios utilizados no manuseio, com certeza ele será autuado pelo crime”, afirma.

O tenente-coronel Jorge Costa Filho, coordenador estadual do 181 – Narcodenúncia, afi rma que o usuário de drogas tem uma tipificação penal como vítima. “Na teoria, ele deve ser levado para tratamento psiquiátrico, psicológico até a sua recuperação. Na prática, ele tem que ser retirado de circulação. No entanto, para conseguirmos chegar até o traficante temos que receber a informação do usuário”, comenta.

A questão não é o tratamento dado para cada tipo de envolvido com a droga, e sim a identifi cação de quem é quem nesse submundo em que vítima e criminoso se confundem, pois a ilegalidade e a imoralidade são paralelas e vão juntas até a decisão judicial. Ser um viciado é moralmente condenável, mas ser um trafIcante além de ilegal é abominável, pois obtém
benefício financeiro com a destruição de outras pessoas.

PORTA DE ENTRADA


O cigarro, o álcool e, por fim, os inalantes são as drogas mais citadas como as primeiras consumidas por usuários de crack – geralmente crianças com idade entre 10 e 13 anos. A facilidade em adquirir drogas lícitas contribui para que crianças e adolescentes tenham suas primeiras experiências. Em muitos casos, a primeira droga é oferecida por alguém
próximo, um parente que pede para o menino acender o cigarro ou oferta um copo de cerveja para provar.

Segundo a coordenadora estadual antidrogas, a psicoterapeuta Sônia Alice Felde Maia, as drogas lícitas geralmente são as primeiras experimentadas. “Na maioria das vezes a maconha é a primeira droga ilícita, pois existe o sentimento de rebeldia, de romper as regras e fazer algo proibido”, comenta.

Para crianças e adolescentes com esse perfil, experimentar uma droga ilícita é uma questão de tempo e oportunidade. A maconha pode ser uma porta de entrada para um mundo que nem sempre tem volta. Para o agente comunitário em reabilitação e diretor da Clínica Terapêutica Rota de Escape, Armando Jorge Iung, não existem regras para um usuário iniciar-se. “Alguns experimentam por curiosidade, outros para se autoafirmar. No entanto, todos têm o mesmo destino, a dependência”, conta.

A curiosidade mata. Este ditado popular é antigo e ao mesmo tempo contemporâneo, pelo menos quando relacionado com o efeito que uma tragada em um cachimbo de crack pode proporcionar. O efeito da droga é muito intenso, porém, muito rápido, o que leva o curioso a fumar uma segunda pedra.

Existem diferenças entre as pessoas, algumas são mais tolerantes e, com isso, correm maior risco de se tornarem viciadas. Outras experimentam a uma única vez e depois nunca mais querem”, explica Armando. Segundo ele, essa é uma regra que funciona para drogas lícitas e ilícitas. “Tem gente que toma uma latinha de cerveja e fica bêbado. Com certeza vai ficar com medo de beber novamente, ou ao menos evitar. No entanto, têm pessoas que tomam muitas latinhas e não sentem o efeito do álcool, ou seja, essa pessoa tem maior probabilidade em se tornar um alcoólico”, esclarece.

PROMISCUIDADE

Durante muito tempo, o Ministério da Saúde focou, e ainda foca, a prevenção da Aids, às doenças sexualmente transmissíveis, e também aos viciados em drogas injetáveis, no entanto, com o surgimento do crack no Brasil nos anos oitenta, e a proliferação na década seguinte, o foco mudou, e hoje viciados morrem sem ao menos buscar o tratamento. “O usuário da droga se torna uma pessoa promíscua, sem valores éticos. A higiene é deixada de lado e o sexo é algo extremamente dispensável, no entanto, pode servir como moeda de troca”, comentou Armando. Dez ou cinco reais, ou até menos, é o valor que garotas cobram por um programa. “Proporcionar prazer não está em questão, e sim, arrumar o dinheiro necessário para comprar uma pedra”, completa.

HISTÓRIAS QUE SE REPETEM

Primeiro o baseado, depois o “cabralzinho” (cigarro de maconha com crack) e por último o cachimbo de crack. Esta foi a caminhada de André, um jovem de 17 anos, que ficou cinco anos envolvido com o tráfico de drogas e procurou ajuda por conta própria para se libertar. “Nas drogas a gente fica preso e precisa de ajuda para sair, não só do vício, mas dos vínculos que ele cria, como amizades, namoradas, músicas e a forma de se vestir”, explicou o garoto que, mesmo depois de um ano na clínica ainda tem receio de rever os velhos amigos. O primeiro “péga” aconteceu aos 12 anos. Alguns amigos da rua ofereceram maconha. Durante um ano, fumou com frequência, mas chegou um tempo que não sentia mais nenhum “barato”. Resolveu conhecer o “cabral”, uma derivação do baseado em que a maconha é misturada com cocaína. “Senti uma diferença legal e achava que estava tudo bem. Cada cabralzinho eu pagava R$ 6. Para isso precisava de dinheiro e comecei roubar”. As primeiras vítimas foram os pais, depois os amigos, vizinhos e, por último, quando já estava usando o crack, saía de moto e, armado de revólver, praticava assaltos em estabelecimentos comerciais e a pedestres. “Eu e um amigo compramos um revólver calibre 32 em sociedade. Cada um deu metade do dinheiro e saímos fazer as “fitas” (roubos e assaltos) juntos”, explicou.

Depois de mais de dois anos usando crack, pesando pouco mais de 50 quilos, percebeu que estava indo para um caminho sem volta. “Acho que foi por Deus. Estava muito triste naquele dia e não tinha dinheiro para comprar mais pedra. Tava na fissura. Sabia que ia ter que roubar de novo. Encontrei um amigo e pedi ajuda. Era um ex-viciado e poderia me indicar uma saída”, explicou. “Os primeiros dias foram difíceis. Uma vez eu fugi da clínica e fui até um pedaço. Fumei um cigarro e, enquanto tragava, veio a imagem da minha mãe e do meu pai na cabeça. Joguei o cigarro fora e voltei correndo”, conta com voz embargada. Na primeira saída da casa, quando havia completado seis meses de tratamento, foi recebido com festa pela família. Mas quando andou pelas ruas do bairro, onde costumava fazer as “correrias”, sentiu medo. “Um cara me parou, tirou sarro porque eu estava gordinho e me convidou para ir na casa dele. Disse que tinha 5g para a gente queimar. Isso dá aproximadamente 20 pedras de R$ 10. Dava para ficar doido uma noite. Desvirtuei e sai correndo. Só saí de casa para voltar para a clínica”, completou, dizendo-se feliz por ter conseguido chegar ao fim do tratamento “limpo”, diz. “Crack é um pesadelo do qual consegui acordar a tempo”, afirma.

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